22/12/2010

após Auschwitz

Não é possível poesia após Auschwitz,
pois toda palavra é tortura.
Não é possível música após Auschwitz,
pois todo som é agonia.
Não é possível dança após Auschwitz,
pois todo corpo foi dilacerado.
Não é possível imagem após Auschwitz,
pois estamos todos cegos.

Auschwitz é nossa arquitetura
e nossa forma de habitar a arte
ainda que impossível.

03/10/2010

Anotações à margem II

I
seriam os olhos esferas que a paisagem restringe?
seria o corpo superfície em que se formam
imagens de horizontes confusos?

os meus pelos estão dispostos ao vento,
à chuva que não chega nunca enquanto
as nuvens que sufocam meus olhos insinuam
sub-repticiamente sobre a pele
uma umidade ambígua ou fraca
luz no fim do dia que não vejo

II
seria a dúvida insuspeitável abismo?
seria possível um instante anterior à palavra?

procuro na solidão o som palpável de perguntas
que ainda não foram formuladas ou que talvez
não se possa ouvir simplesmente porque
toda reflexão é uma refração ou um objeto rarefeito



18/08/2010

Anotações à margem

Como retornar quando não se sabe pra onde,
quando o estranho não tem origem?
Como conciliar o desejo de permanência e a necessidade de fuga,
quando se foge de tudo, de si mesmo e da pergunta?
Como inventar um caminho sem chão, ou seguir sem rumo,
quando a coragem, na verdade, é vertigem?

...

saber-se só
na impossibilidade de repetir
o parto e a partida;

esquecer-se ao
abandonar o porto náufrago
e o conforto da despedida;

seguir sozinho
quando a vida não passa
de um trabalho constante:
desmontar roda-gigante.

Parque da Pampulha, 07.08.2010

10/08/2010

retrato de família

raízes expostas
de uma árvore tombada

infrutífera
seca, oca,

apodrece
degenera

genealogia morta.

16/06/2010

uma carta não enviada

Escreveria uma carta como uma arma apontada para sua cabeça e dispararia palavras à queima-roupa num súbito assalto exigindo tudo aquilo quanto me deves.
Escreveria uma carta em uma parede de vidro para lhe ver através, sentado em sua sala espelhada olhando a si mesmo como quem se perguntasse inocente por sua culpa.
Escreveria uma carta feito um cão faminto e farejaria seu corpo e lamberia sua orelha enquanto estivesses dormindo sem sentir minhas pegadas à sua volta.
Escreveria uma carta como quem se percebesse mudo e gemesse de desespero diante de sua partida.
Mas você distante, parado, acena surdo, à espera de que eu diga adeus.

09/05/2010

impossibilidades: do silêncio e da solidão

Falar sobre minha solidão é uma dupla impossibilidade: ultrapasso o limite do silêncio, invento um interlocutor ausente. Talvez seja necessário um segundo passo, em sentido contrário: um interlocutor solitário e um eu ausente.
Poderia então falar sobre o andar distraído em meio à multidão anônima numa cidade desconhecida; sobre a estranheza e familiaridade de cada rosto e cada gesto, cada prédio em cada esquina, a repetir-se incansavelmente, do menor ruído, a mínima sombra, o vento na blusa, ao acidente na rua, o choque, os transeuntes, a cena de sempre.
Tudo isto é sólida solidão e silêncio. Tão agudo que a epiderme se rompe e a futura ferida se expõe; tão agudo o vento depois da chuva, o rumor da cortina, o calor através da pele, a veia, o nervo; sem mudar, contudo, a temperatura do corpo, o tato ou o tempo.
Nenhuma permanência. Neste espaço a memória persiste: o contato é distante, o afeto é distante, o amor é distante, e não se fala sobre isso. Então preciso ir tão longe para dizer essas coisas que talvez se repitam, nas ruas e nos dias, como uma contradição permanente, uma falta incontornável, do silêncio, da solidão e da saudade.

02/04/2010

Penetrar com o olhar algo tão profundamente até que desapareça.

distraídos

quando seus olhos não viam o vento
carregando as folhas
e o gesto agressivo do tempo
suas mãos perdiam o tamanho das coisas

As bordas da angústia dão os limites do meu corpo, do desejo comprimido em perguntas

Ando passo a passo perplexo.
Parado refaço o trajeto.
Ando passo a passo distraído.
Interrompo o fluxo contraído da vontade.
Deserto do pensamento.

Passo a passo perplexo
Passo perto da palavra sexo
Parada a um pé da porta.

Qualquer lugar tornou-se lugar comum

A vegetação asfáltica da cidade atravessa a retina da rua.
...

Despedida do inverno

o sol a um passo da porta cobre a cama que guarda o sabor do sono sereno e do silencioso despertar na súbita manhã

na densa aridez do fato, irrevogável ato da memória em cacos dos pequenos objetos cotidianos lançados no abandono, decomposição da matéria pelo uso dos sentidos

a lembrança refaz o fato que resiste ao esquecimento e repete o corte, a parte incongruente, a gravidade inversa para alcançar o vôo da janela

cansada de existir

ignorância

não acredito em verdades silenciosas,
desconfio de idéias estáticas,
prefiro pensamentos estrábicos
que duvidam de espelhos e de
si mesmos.

Taxonomia do tóxico (letra F)

A flor, o futuro fruto; a faca, o furto; a força fabricada na fúria; a farsa, a fuga; afã e fadiga; a fé no futuro e na fortuna; a falsa felicidade, a falta de fragilidade; a fome e a feiúra; a feira e a fartura; a fruta, a folha; a fita, o fígado; o falo, a fala, a fenda; fonema, figura; o fascículo e o folhetim; o fascínio e o festim; a fila, a faísca, o fio; a ferida e o fim.

"o que dá na telha escorrega"

sensorium

Primeira experiência sonora em quatro partes ao todo

1. válvula de descarga
2. motor de geladeira
3. dilatação do piso
4. água em ebulição

(combiná-las de diferentes formas)

música do vento

Linhas de nylon de diversos comprimentos estendidas verticalmente e dispostas lado a lado ao longo da praia (ou em outro lugar com vento) produzindo uma harmonia.

conversa com manoel

irmanei com pedras

nossa harmonia quieta
tem chão e coágulos
de chuva e vento

me acento onde quer
a gravidez do mundo
uma permanência impossível

nesse estado de pedra
fragmento de estátua
ponte e possível
vôo

conversa com caeiro

"pensar incomoda como andar na chuva"
quando o vento é contrário
e as calçadas empoçam

os homens conversam sozinhos
atrás das janelas
habituados ao silêncio
após as perguntas

o céu feito chumbo
ou cinza de incêndio
...

21/03/2010

sua palavra corrosiva
rasga minha pele
segura meu passo
a um passo da porta

– a dor incurável
da impossibilidade do retorno –

resta-me seguir outro
caminho improvável
caso amanheça
e eu volte a dormir.

Deus é um número irracional.

As tardes turvas de outono e as partes do tempo não lembradas, todavia vividas até o momento da partida, eram impregnadas de uma habitual solidão.


Faço da minha subsistência parte da existência
depois de fazer da existência subsistência
cuido de cada hábito para morrer a tempo de acordar
no labirinto circular em que me procuro.

(inventar uma pergunta convexa)
as nuvens nos meus olhos vagos
o silêncio da espera abandonada:
o tempo se devora.

a chuva sobre a pálpebra confusa
o choro represado da angústia:
o tempo se demora.

as nuvens nos meus olhos fechados
no parapeito da memória:
o tempo se desdobra.

teu corpo nublado
interroga minha mão:
o tempo se devora.

no meu corpo redescoberto
um sol possível
de ser pensado.
em matéria de tempo
o tempo da matéria
não é o mesmo:
da árvore,
da pedra,
da árvore
do outro lado
da pedra.

o fim do horizonte não há.
Quando a delicadeza e o cuidado esbarram nas incertezas de quem existe apenas uma vez, os limites do olhar tornam-se demasiadamente distantes e as palavras soam silenciosamente incompreensíveis.

Quando a espera se desfaz calada, guardada em perguntas repetidas sem a violência de qualquer resposta, reparte o encontro em possibilidades dessemelhantes de inacusável escolha e indesejável dúvida.

APENAS SEREMOS O QUE NÃO SERÍAMOS

Quando amanhã sairmos à rua para ver o sol se por e voltarmos úmidos de serenidade seremos então o que não seríamos se não saíssemos; porém a rua continuaria cheia de passos, o por do sol a se opor, o sereno a molhar os corpos inausentes.

Depois de ouvir isto, permaneci deitado. Não acendi a luz. Continuei procurando na memória a solidão daquela hora. Levantei. Não fui à janela para ver se o havia alguma luz.

Meus passos seguem lentamente seu destino e sem que eu pergunte a cada chão onde estou deixo-me levar por estas pernas tão alheias assim como acredito que coisas são feitas de olhar; e em cada canto ouço sussurros desmedidos de alguém que talvez esteja ali.

(2007?)

assunto miúdo

me deves uns trocados,
assunto miúdo,
aquele papo pouco
de trocar palavras por
gestos distraídos.

20/03/2010

Tomei a chave jogada da janela – abri a porta do edifício – subi a escada (tão indiferente aos meus passos) – cheguei ao apartamento. A sala, o quarto, a cozinha, o banheiro: ninguém; nem a poeira deitada sobre os móveis extintos notou minha presença inquieta.

(2006?)

PONTOS DE UMA PENÚLTIMA TENTATIVA DE ESTRÉIA

Olhei mais uma vez. Ele ainda estava lá. Quando virei, deve ter olhado o relógio: meia hora. Cheguei em casa, liguei o aparelho de som, a mesma música de ontem. Sentei no sofá. No horizonte raso algumas nuvens. Faltou energia. Busquei no armário alguma vela. Nunca comprei. Acendi um cigarro. O último gole de conhaque me trouxe as lágrimas, as mesmas de ontem.

(2006?)
Toda via é a mesma.
Todavia há outras.

Quem vê?
Quem vai?

(2006)

DESCONCERTO DE PIANO

Primeiro movimento
Prelúdio em si menor (um blues)

Um tanto de tango tocando
Um pouco samba torto também

Jazz fusion confusion
Com fado fora do tom

Muda o modo
Muda o mundo

Kind of Blue

Segundo movimento
Interlúdio

Silêncio

Terceiro movimento

Trecho de uma Resolução:
Ííí dabi-ibadá budê

Música incidental: Epístrofe

Quarto movimento
Interlúdio

Sol

Quinto movimento

MÚSICA:
violoncelo: melancolia: cordas arqueadas;
violão: angústia: corpo vazio;
piano: tato: dedos cravados;
trompa: sopro: círculo.
MÚSICA:
palavra-imagem.
MÚSICA quase não é som.

(2006)
NÃO SE PODE SAIR COM TOURO NA RUA

Não fosse o fim da festa (não conhecia ninguém) – mas meu irmão insistiu – não permitiria que ele prosseguisse – eu sonhava (começou a chover).

(Olhei o céu e nada). No banho, vendo meus olhos abertos, retomou o assunto – o que havíamos conversado? Permaneci na cama com um sorriso de quem ouve. Estava se limpando da noite, dos lençóis, do suor, do meu corpo, da lembrança da noite, do suor do meu corpo. (Olhei o céu e nuvens).

Entrei (não havia ninguém na casa), peguei algumas roupas – alguns papéis no chão –, sentei.

“Me ajuda a lavar a mão?”
Era muito pequena deitada no assoalho.
“O que houve?”
Não tinha um braço e uma perna.
“Nada...”
Hematomas amarelecidos e azuis.
“Como assim?”
Era muito pequena sentada no lavabo.

Não. Não a conheço. Olhos vermelhos? Um pouco de pó, talvez. Senta. Quer? Não, não a conheço. Só nos falamos uma vez. Ela estava sozinha. Precisava de atenção. Mas não a conheço. Parece bonita. Não. Não lembro o que conversamos. Era sobre ela. Estava sozinha. Estávamos na sala. Um pouco de pó. Ela estava sozinha. Precisava de atenção. Não. Não lembro. Eu sei o que eu queria. Queria sexo. Só sexo. Um pouco de pó. Então acho que ela queria. Não sei. Foi tudo muito rápido. Não sei o nome. Não lembro. Só sexo. Ela estava sozinha. Não fiz nada. Aliás. Ela nem gritou. Entende?

Fechou o registro, enxugou o sexo, continuou o assunto (como?), repetiu, falou atrás da toalha, veio em minha direção, (como?) te amo. Já estava em cima de mim, meu amor, repetia, meu amor, sua pele ainda fria do banho, sua boca com gosto de pasta, me chupa, meu amor, goza, meu amor, meu amor... Alisou meu rosto, beijou, levantou, lavou o sexo, falou algumas palavras, virei de lado e fechei os olhos.

Saí de sexo exposto, andei na calçada, alguém parou e me disse alguma coisa, sorriu e se foi, continuei na calçada, atravessei um jardim, não lembro qual casa, um pai comia o filho no quarto, voltei pra calçada, meu irmão veio falar comigo. Não. Não lembro. Era importante?

Mandei tomar no cu. Vesti minha roupa. Preciso ir. Preciso ir.

(2006)

14/01/2010

tenho de reinventar minha existência.

uma cidade em ruínas que se apaga ao menor ruído da máquina estática do tempo. nos espaços vazios dos escombros se arriscam meus projetos, que se desfazem antes mesmo de serem erguidos.

tenho de encontrar minha solidão. talvez haja um alento nesse silêncio.

penso que cada inseto pode ser um Gregor, ou um escritor, ou outro eu.
penso: existo? pensar só pirora as coisas.

(20.11.09)

13/01/2010

Diário de bordo. Viagem a Brasília.


25.11.09

Um horizonte, um mar onde encostar os olhos e umedecer a boca, neste caminho que não termina.

Vertigem: sensação de queda num abismo.
Origem: perda de horizonte.



26.11.09

Brasília é uma cidade como outra qualquer. Os prédios encobrem a paisagem, o caos engole a ordem. A cidade torna do concreto ao croqui. Resta o traço, o rastro, a memória em forma de souvenir. A cidade tem de ser desmontada, reinventada a cada segundo. Onde flutuam seus espelhos, seus vidros, o lápis não descobre, o insignificante fragmento que sustenta uma catedral, a leveza do tempo inacabado, da cidade abandonada.

A cidade que me habita desmorona incessantemente, pedra a pedra ao pó reduz-se sua possível existência, poeira de matéria incerta, disforme.

Tenho de reinventar minha existência. Pedra a pedra, palavra por palavra.

Espero encontrar em alguma esquina remota o ponto de fuga onde o destino não me veja correndo de mim mesmo.

Para onde retorno se não sei de onde parti?

(Imagem: croqui de Lúcio Costa)