24/11/2011

PEDRA PENSA


pedra-pedra
pedra-palavra

pedra perpetra
perder-se de si
desprender-se da parte

dedicar todo grão à soltura
pedra perdura
pedra dura

aprender a precariedade
de ser sempre
pedra presente

pedra-pedra
pedra-perda
pedra-pura

pedra propensa
pedra pende
pedra perpassa

pedra preta
pedra presa
pedra tarda

ainda pedra
pedra-pedra
pedra-tempo

17/11/2011

Vitorianos


Sua crise de identidade, sintoma de uma adolescência tardia, é fruto do autodesprezo – uma virtude que se aprende em casa, pois autodomínio se descobre sozinho e se esquece.

Sua sexualidade desinibida paga o preço de não saber a quem se expor, pelo medo de ser pego no primeiro ato de contradição.

Sua nostalgia sem inocência, cega e destrutiva, fuga obstinada, demonstra uma necessária incoerência entre os modos de sentir e de pensar: pois lugar algum é como o lar que um dia se perdeu e que nunca houve.

Aliás, sentimento é uma palavra indemonstrável, que se guarda em papéis na gaveta.

28/10/2011

Pode ser Pó de Ser Emoriô: variações em torno do mesmo tema


Música do tempo

O material musical deve tornar explícita a contradição histórica que o sustenta e o atualiza. Esta contradição histórica significa que o momento presente afirma-se como continuação e negação do passado para afirmar um futuro incerto a ser construído sobre bases solapadas. O momento presente compreende-se na tensão entre a negação e a afirmação, entre a tradição e a novidade, entre a transitoriedade e o impulso de permanência. A música deste tempo, a música deste lugar, a música de Pó de Ser Emoriô, como variações em torno do mesmo tema, carrega esta contradição histórica, enquanto mantém e modifica a tradição musical em vistas de uma atualidade a ser inventada.

“Cê tem fé em quê?”, a um só passo, questiona e renova a tradição, seja a musical (o congo), seja a religiosa (a Umbanda), ao suspender e disseminar seu conteúdo (a fé), na multiplicidade de formas que a compõe: o ponto, o samba, o santo. Assim, a raiz comum dessa tradição de muitos ramos e frutos, o sincretismo, deixa de ser uma questão puramente religiosa para tornar-se o fundamento de uma união musical, artística. A música de Umbanderia pergunta não apenas ao ouvinte, portador da tradição, mas à própria tradição qual é seu fundamento. Tradição é transmissão e não há transmissão sem ruptura e renovação.

Ao beber na fonte do cancioneiro popular brasileiro, na antropofagia multiculturalista do Tropicalismo, e ao resgatar dos Novos Baianos a indissociável ligação entre música e vida, composição e convivência, isto é, a harmonia musical vital, agora, estes doces “novos bárbaros”, convidam para o banquete dos loucos, onde quem tem razão não tem direito a voz, mas a ouvir o que tem a dizer esta tradição que recomeça amanhã.

Canção da paisagem

Na canção, a melodia não é mero acessório ou suporte à letra, mas está intimamente ligada ao seu sentido, ou melhor, fornece um sentido melódico à palavra que, enquanto poesia, possui outro campo semântico. A entonação destoante de uma palavra altera seu significado extrínseco, ao passo que o sentido intrínseco depende da disposição da palavra no papel, enquanto poesia. E ao revés, a palavra fornece um sentido poético que não havia na melodia e, assim, ao expandir seu campo semântico e conferir um sentido que lhe era estranho, cria nesta interseção um campo semiótico em que a letra se comunica como melodia e a melodia como letra, em sua mútua semelhança e estranheza, segundo um sentido que, separadamente, cada uma por si, não conteria, ou seja, um sentido aberto a outros sentidos.

Porém, estas distinções entre melodia e palavra, significado interno e externo, são arbitrariedades não funcionais, inúteis, desnecessárias, mas que, apesar de tudo e de si, por serem absurdas, pretendem apontar para relações insuspeitas entre pares que aparecem como unidade na canção. Esta disjunção desnecessária dos elementos constitutivos da melodia é uma vez mais tanto válida quanto inválida para os outros elementos da música: o ritmo e a harmonia. Se o ritmo é formado por interrupções e a harmonia por intervalos, de sua junção com a melodia, formada pela sucessão de notas, a música encontra-se com a poesia na canção: harmonia temporal de palavras e sons. E enquanto temporal, temporã, a canção precisa ser sempre refeita, enquanto única e irrepetível, assim que tocada desaparece, para ser novamente cantada, mais uma vez, única.

É assim que “A Hora da Chuva Cair”, canção que nasce na paisagem, no mar, ressoa o mundo a ser feito, feito música, poesia, canção, pois “nada no mundo virá, ninguém virá lhe dizer, qual a receita de ser”. Pode ser Pó de Ser Emoriô: música sem receita, mundo sem conserto, ser sem conceito.
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Informações:
Ouça, veja, toque, sinta: http://podeseremorio.tnb.art.br/
E vá: show dia 31 de outubro, 20h, Teatro do Ifes.

08/10/2011

Receita para adoçar a vida


Geleia de limão siciliano

5 ou 6 limões sicilianos
2 copos de água
2 copos de açúcar

Corte os limões ao meio e esprema para obter o suco. Retire o bagaço com uma colher e coloque-o com as sementes em um saquinho amarrado (o bagaço libera a pectina, necessária para dar consistência à geleia). Corte a casca em finas fatias. Em uma panela de fundo grosso, junte o suco, a casca, a água e o saquinho com o bagaço (se quiser dar um cheirinho a mais, acrescente cravo e canela). Leve ao lume. Quando ferver, espere um pouquinho e acrescente o açúcar. Enquanto isso, ouça uma música e mexa de vez em quando. Cerca de meia hora depois, verifique se está no ponto: coloque uma prova num pirex e vire. Se não escorrer, está pronto! Para enfeitar o vidro: hortelã colhido à meia noite depois de um dia de chuva.

02/10/2011

o que é o desejo, senão uma estranha entrega ao inesperado?

em que nada acontece III


“Procure a sorte à sua volta, ela pode estar mais próxima do que você imagina”, dizia o bilhete, que depois perdi.
Usei o perfume dos bravos – pensei: é preciso coragem para prosseguir. Conversei com três lobos perdidos numa noite sem lua. Guardei um jasmim sob o chapéu para perfumar os cabelos. Esperei amanhecer, hora em que os prédios são de uma cor confusa.
Fiz uma lista, que depois perdi, de coisas imprecisas que fazer: sair de casa sem anúncio ou previsão, vagar pela cidade sem destino ou propósito – pensei: quem não espera não encontra o inesperado. Comprei sapatos que mordem o calcanhar. Dei com bares e portas fechados, pessoas indecisas como eu e lugares previsíveis como sempre. Pensei: é preciso coragem para parar.
Sem pensar, estático, com os olhos ora ao longe ora ao chão, me surpreendi quando um estranho me perguntou o que faço, realmente: nada. Isto fez estender o desentendido.
Saí só para só ficar. Assim é, em que nada acontece, como sempre.
Sempre previsível, nunca provável.

em que nada acontece II

Quase. Zero muda tudo. Nunca ganhei nada, nem em sorteio, bingo ou coisa parecida. Não que participasse ou esperasse algo. Nunca me empenhei em nada. Não acredito na sorte. Aposto, mas nunca em números.
Desconfio de todo ato. O mínimo é o máximo. Nada fazer exige coragem.
Deram-me um número: trinta e três. Não, não era o pneumotórax. Sem acreditar (como alguém que contempla a arquitetura contraditória que os homens erguem em monumento à ineficácia da duração – tudo perece, penso), aguardo.
Disseram: trinta e três. Por alguns segundos titubeei. Por gentileza, não por acreditar (como alguém que ensaia um gesto estúpido e previsível para ser espontâneo – o que o torna mais estúpido ainda), prossigo.
Não, trinta e três não é trezentos e trinta. Zero faz toda diferença. É isto.
Dei a volta ao círculo. No meio do caminho, quase encontrei: Leisa. Parei por alguns segundos. Não, havia um zero, um redondo G antes de Leisa. Sim, quase, sempre.
Tarde cheguei a casa, cansado de nada acontecer.

27/08/2011

Muitos de nós

Quando perguntam “que mundo daremos aos nossos filhos?”, deveriam também perguntar “que filhos daremos ao mundo?”

Um, nenhum, ninguém.

25/05/2011

em que nada acontece I

À espera do inesperado, procurei me perder. Vagar pelas ruas, conversar com mendigos, entrar em algum lugar abandonado. Nada aconteceu, como previsto. As portas estavam fechadas, ninguém apareceu e é impossível perder-se em uma cidade planejada. Estúpida ironia. Um dia extraordinariamente normal. Nada belo, nenhum sentimento. Apenas a suspeita de vagar em vão. Não há diferença entre sair sozinho ou acompanhado – a mesma solidão, assumida ou disfarçada. Sempre os óculos escuros a esconder olhos contritos e ressequidos de dias sem dormir, meses sem chuva, anos sem chorar.

24/03/2011

um sonho que não sonhei

Entrei em um antigo cine-teatro, de chão e paredes de madeira, poltronas de tecido vermelho, com uma tela de projeção em um palco redondo. As cortinas estavam abertas. Sentei, apagaram-se as luzes. O filme projetado tinha um aspecto de sonho ou lembrança de infância, como uma fotografia antiga de cujas cores, cenário e contexto a história fora remontada.

Dia ensolarado em uma praia de areia e águas claras. Foco difuso ou concentrado em um ponto impreciso entre a câmera e a cena.

Estava minha mãe, ainda adolescente, de maiô, em pé na areia, levemente inclinada para frente, com as mãos no pescoço e os braços rentes ao corpo. Sua expressão estática, boca aberta, parecia chamar alguém no mar.

À esquerda e mais ao fundo, sentada sob um guarda-sol, de cabelos escuros, estava minha avó, cuja silhueta turva não se distinguia da paisagem.

No mar, brincavam meus tios muito jovens. A cena era cheia de movimento: os braços agitando a água, as penas sacudindo sem tocar o fundo, a gargalhada escancarada nos dentes. Aquele rosto magro de nariz comprido e afilado, era meu tio que nunca conheci. Não consegui focar seu rosto. Quanto mais enquadrava a imagem e ampliava o detalhe, mais se tornava embaçado e indistinguível.

Acenderam-se as luzes. Entrou no palco uma mulher contando ópera. Na cadeira ao meu lado havia um libreto. “A interpretação dos sonhos”, de Freud, era interpretada naquela canção.

Acordei perturbado com aquelas imagens e procurei remontar a história. Perguntei, afinal, quem poderia ter visto aquela cena, quem estaria com a câmera na mão, ou de quem seria aquela lembrança. O único personagem que não era visto era meu avô.

02/03/2011

Plaza de Mayo


Na praça do obelisco, os acontecimentos mais corriqueiros – pombos disputam migalhas e voam alvoroçados quando um menino de braços abertos corre em sua direção – soam como notas de um arranjo orquestrado – pessoas passeiam, outras param por um instante dispostas ao redor do monumento – como um centro gravitacional em torno do qual circulam fragmentos que logo voltam a se dispersar – sem notar no que estava ali inscrito talvez eterna ou momentaneamente – como um instantâneo fixado na retina quando acaba a bateria da câmera fotográfica.

(Buenos Aires, 26.10.10)

28/02/2011

impressões de uma manhã


por entre uma estreita fresta da janela insinua-se uma tímida luminosidade a erguer um microcosmo de poeira e película dentro do quarto escuro onde todas as manhãs o mesmo sol incide sobre o livro deitado no criado mudo formando envergaduras nas bordas da capa e amarelecendo as páginas em um envelhecimento diário para conservá-las como folhas de um eterno outono

(imagem: William Turner, "Rain, Steam and Speed")

26/02/2011

breviário

pouco antes de amanhecer contaram-se trezentos e sessenta e cinco voltas da minha vinda escritos em um anuário de areia e pedra dura desde quando parti carregado de sonhos e saudades insipientes da ilha cujos limites delineavam minha vista atrás de um horizonte belo e amplo sem saber se afinal partia rumo ao incerto ou se regressava para uma origem desconhecida apenas com sorrisos e lágrimas e mais perguntas que certezas somente de amigos que se mantêm próximos na distância mesmo vertida em tempo feito ponte que me liga de volta à ilha e ao porto de onde parti sem jamais regressar o mesmo nesse ir e vir constante a trocar palavras pensamentos memórias por novos desejos e projetos que se perdem ou se refazem no caminho que de tanto percorrer não sei mais para onde voltar e de onde partir se do mar à montanha ao longe que enfim me encontro como quem jamais partiu e jamais esteve na espera de que mesmo ausente houvesse para onde ir mas sem saber encontrasse esse lugar como se dele tivesse lembrança pois lembranças mudam como lugares e escrevê-las significa caminhar de trás para sempre e dar continuidade ao que é sem começo mas cheio de intervalos pausas silêncios que dão fôlego novo para dizer as incontáveis imagens que vêm juntas à memória como uma implosão contrária em que tudo se concentra ou como uma fotografia em que toda a história está contida em um único instante


04/01/2011

sobreviver

no meio do meu medo tinha nada
que haver que ser senão
continuar a viver

fazer da subsistência existência
persistir para não perecer

sobreviver
sobretudo

permanecer
       penso
sus
       tento
a
       tudo

eu só
ex in
-isto

caco
         fônico

meio medo
quase eu
todo nada