15/11/2006

(PRIMEIRA PERGUNTA)

QUEM PERGUNTOU PELO INDEFINÍVEL RUMO?
— sobre pontes e possibilidades —


Um dia de perder o olhar no céu uníssono. Outro de buscar nas janelas objetos diluídos pela luz. Então perceber a catástrofe dos passos alheios que sabem aonde vão. Mas: é sempre incerto caminhar. É preciso ter os pés desnudos. Sempre. Sair para encontrar-se no vazio, para não morrer entre paredes. Nunca.

Não há — senão uma ilusão transitória — outra ilusão.

Intermitente: como um navio sem nós que parte em transcurso invisível sobre pés inimagináveis e se entrega aos braços invariáveis dos portos inexistentes — entre a maré incerta e a noite náufraga —, deixa sobre a inesgotável matéria imprevisíveis palavras (dentro: ininteligíveis) e leva longe onde leve verdades imateriais:

navego sem remo e sem âncora, sem rumo e sem ânsia de chegar, navego sem cais e mais nada: sou isto que invento à circunferência de meus olhos.

O que disse o inverno quando passou com acenos de dedos secos e esquecidos, com sua mão de árvore solitária? Não ouvimos (respiramos)?

Espraia-se em meu corpo o desejo sem mar, o vento inevitável. Deságua em mim o rio sem margem, a chuva inadiável. Carrego nas mãos outra pergunta:

Não me ensinou o inverno a deixar caírem as folhas?

Guardo tanto maio e meio junho nas vésperas de dezembro, nas costas de janeiro (quem sabe algum fevereiro?), que já não sei o sabor do ido ar árido muitas vezes brando. Repetições empoeiradas de gestos imprecisos, reflexos dissimulados de superfícies desenterradas: nada resta nas gavetas senão lembranças amarrotadas: caminhos que nunca levam de possibilidades a possibilidades; horizontes indistintos do chão, lugares submersos em incertezas: os descaminhos nos levam sempre de impossibilidades a impossibilidades.

Coleciono horas nos cabelos, colho manhãs com os olhos e deixo nos cílios o imprevisível pólen, levo meus sentimentos nas têmporas. Mas é sempre tarde que percebo ter passado a primavera enquanto conto gramas no jardim. Sol na pele. Agora eu conto ondas.

02/11/2006

(SEGUNDA PERGUNTA)

QUEM APAGOU O REFLETOR NOTURNO?
— sobre pálpebras e lábios —


Com o tempo na língua — é preciso deixar o tempo dissolver na língua —, lento, para sentir nos pés, nas pernas, nos cabelos, os passos e o vento; perceber o olhar dos objetos: o tempo petrificado nos postes, nas calçadas, nos prédios, o tempo ultrapassado no próximo passo. Andar na ponta da língua, sentir com a ponta dos pés.

Tomar o rumo da fumaça (a vida é o instante em que se atravessa o feixe de luz da janela), se dispersar, ocupar todas as arestas do quarto e os brônquios de cada segundo esquecido: duro tempo, irrecuperável tempo, que se dissolve.

Fechar os olhos, apagar a luz (que permanece acesa), guardar as esferas abertas numa caixa, limpar da poeira diária cada gomo, limpar com sonhos, limpar dos sentimentos ressequidos, limpar com lágrimas.

A pele vestida de nudez e de desejos, porém muda, aquém da carne, palavra por palavra, nada transparece. O que fazer das mãos que afagam o corpo sem sentir? O que fazer do corpo que não sabe das mãos? O que sonhar quando se abrem os olhos?

Fôlego trôpego de um asmático: assim, nas esquinas e nas casas, procuro abrigo de um destino morto, e em cada encruzilhada e em cada porta encontro o entulho de minhas esperanças: espelhos.

Talvez haja estrelas além das pálpebras, maçãs além dos lábios: mas é preciso ter olhos e dentes.