28/10/2011

Pode ser Pó de Ser Emoriô: variações em torno do mesmo tema


Música do tempo

O material musical deve tornar explícita a contradição histórica que o sustenta e o atualiza. Esta contradição histórica significa que o momento presente afirma-se como continuação e negação do passado para afirmar um futuro incerto a ser construído sobre bases solapadas. O momento presente compreende-se na tensão entre a negação e a afirmação, entre a tradição e a novidade, entre a transitoriedade e o impulso de permanência. A música deste tempo, a música deste lugar, a música de Pó de Ser Emoriô, como variações em torno do mesmo tema, carrega esta contradição histórica, enquanto mantém e modifica a tradição musical em vistas de uma atualidade a ser inventada.

“Cê tem fé em quê?”, a um só passo, questiona e renova a tradição, seja a musical (o congo), seja a religiosa (a Umbanda), ao suspender e disseminar seu conteúdo (a fé), na multiplicidade de formas que a compõe: o ponto, o samba, o santo. Assim, a raiz comum dessa tradição de muitos ramos e frutos, o sincretismo, deixa de ser uma questão puramente religiosa para tornar-se o fundamento de uma união musical, artística. A música de Umbanderia pergunta não apenas ao ouvinte, portador da tradição, mas à própria tradição qual é seu fundamento. Tradição é transmissão e não há transmissão sem ruptura e renovação.

Ao beber na fonte do cancioneiro popular brasileiro, na antropofagia multiculturalista do Tropicalismo, e ao resgatar dos Novos Baianos a indissociável ligação entre música e vida, composição e convivência, isto é, a harmonia musical vital, agora, estes doces “novos bárbaros”, convidam para o banquete dos loucos, onde quem tem razão não tem direito a voz, mas a ouvir o que tem a dizer esta tradição que recomeça amanhã.

Canção da paisagem

Na canção, a melodia não é mero acessório ou suporte à letra, mas está intimamente ligada ao seu sentido, ou melhor, fornece um sentido melódico à palavra que, enquanto poesia, possui outro campo semântico. A entonação destoante de uma palavra altera seu significado extrínseco, ao passo que o sentido intrínseco depende da disposição da palavra no papel, enquanto poesia. E ao revés, a palavra fornece um sentido poético que não havia na melodia e, assim, ao expandir seu campo semântico e conferir um sentido que lhe era estranho, cria nesta interseção um campo semiótico em que a letra se comunica como melodia e a melodia como letra, em sua mútua semelhança e estranheza, segundo um sentido que, separadamente, cada uma por si, não conteria, ou seja, um sentido aberto a outros sentidos.

Porém, estas distinções entre melodia e palavra, significado interno e externo, são arbitrariedades não funcionais, inúteis, desnecessárias, mas que, apesar de tudo e de si, por serem absurdas, pretendem apontar para relações insuspeitas entre pares que aparecem como unidade na canção. Esta disjunção desnecessária dos elementos constitutivos da melodia é uma vez mais tanto válida quanto inválida para os outros elementos da música: o ritmo e a harmonia. Se o ritmo é formado por interrupções e a harmonia por intervalos, de sua junção com a melodia, formada pela sucessão de notas, a música encontra-se com a poesia na canção: harmonia temporal de palavras e sons. E enquanto temporal, temporã, a canção precisa ser sempre refeita, enquanto única e irrepetível, assim que tocada desaparece, para ser novamente cantada, mais uma vez, única.

É assim que “A Hora da Chuva Cair”, canção que nasce na paisagem, no mar, ressoa o mundo a ser feito, feito música, poesia, canção, pois “nada no mundo virá, ninguém virá lhe dizer, qual a receita de ser”. Pode ser Pó de Ser Emoriô: música sem receita, mundo sem conserto, ser sem conceito.
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Informações:
Ouça, veja, toque, sinta: http://podeseremorio.tnb.art.br/
E vá: show dia 31 de outubro, 20h, Teatro do Ifes.

08/10/2011

Receita para adoçar a vida


Geleia de limão siciliano

5 ou 6 limões sicilianos
2 copos de água
2 copos de açúcar

Corte os limões ao meio e esprema para obter o suco. Retire o bagaço com uma colher e coloque-o com as sementes em um saquinho amarrado (o bagaço libera a pectina, necessária para dar consistência à geleia). Corte a casca em finas fatias. Em uma panela de fundo grosso, junte o suco, a casca, a água e o saquinho com o bagaço (se quiser dar um cheirinho a mais, acrescente cravo e canela). Leve ao lume. Quando ferver, espere um pouquinho e acrescente o açúcar. Enquanto isso, ouça uma música e mexa de vez em quando. Cerca de meia hora depois, verifique se está no ponto: coloque uma prova num pirex e vire. Se não escorrer, está pronto! Para enfeitar o vidro: hortelã colhido à meia noite depois de um dia de chuva.

02/10/2011

o que é o desejo, senão uma estranha entrega ao inesperado?

em que nada acontece III


“Procure a sorte à sua volta, ela pode estar mais próxima do que você imagina”, dizia o bilhete, que depois perdi.
Usei o perfume dos bravos – pensei: é preciso coragem para prosseguir. Conversei com três lobos perdidos numa noite sem lua. Guardei um jasmim sob o chapéu para perfumar os cabelos. Esperei amanhecer, hora em que os prédios são de uma cor confusa.
Fiz uma lista, que depois perdi, de coisas imprecisas que fazer: sair de casa sem anúncio ou previsão, vagar pela cidade sem destino ou propósito – pensei: quem não espera não encontra o inesperado. Comprei sapatos que mordem o calcanhar. Dei com bares e portas fechados, pessoas indecisas como eu e lugares previsíveis como sempre. Pensei: é preciso coragem para parar.
Sem pensar, estático, com os olhos ora ao longe ora ao chão, me surpreendi quando um estranho me perguntou o que faço, realmente: nada. Isto fez estender o desentendido.
Saí só para só ficar. Assim é, em que nada acontece, como sempre.
Sempre previsível, nunca provável.

em que nada acontece II

Quase. Zero muda tudo. Nunca ganhei nada, nem em sorteio, bingo ou coisa parecida. Não que participasse ou esperasse algo. Nunca me empenhei em nada. Não acredito na sorte. Aposto, mas nunca em números.
Desconfio de todo ato. O mínimo é o máximo. Nada fazer exige coragem.
Deram-me um número: trinta e três. Não, não era o pneumotórax. Sem acreditar (como alguém que contempla a arquitetura contraditória que os homens erguem em monumento à ineficácia da duração – tudo perece, penso), aguardo.
Disseram: trinta e três. Por alguns segundos titubeei. Por gentileza, não por acreditar (como alguém que ensaia um gesto estúpido e previsível para ser espontâneo – o que o torna mais estúpido ainda), prossigo.
Não, trinta e três não é trezentos e trinta. Zero faz toda diferença. É isto.
Dei a volta ao círculo. No meio do caminho, quase encontrei: Leisa. Parei por alguns segundos. Não, havia um zero, um redondo G antes de Leisa. Sim, quase, sempre.
Tarde cheguei a casa, cansado de nada acontecer.