O material musical deve tornar explícita a
contradição histórica que o sustenta e o atualiza. Esta contradição histórica
significa que o momento presente afirma-se como continuação e negação do
passado para afirmar um futuro incerto a ser construído sobre bases solapadas.
O momento presente compreende-se na tensão entre a negação e a afirmação, entre
a tradição e a novidade, entre a transitoriedade e o impulso de permanência. A
música deste tempo, a música deste lugar, a música de Pó de Ser Emoriô, como variações em torno do mesmo tema, carrega
esta contradição histórica, enquanto mantém e modifica a tradição musical em
vistas de uma atualidade a ser inventada.
“Cê tem fé em quê?”, a um só passo, questiona e
renova a tradição, seja a musical (o congo), seja a religiosa (a Umbanda), ao
suspender e disseminar seu conteúdo (a fé), na multiplicidade de formas que a compõe:
o ponto, o samba, o santo. Assim, a raiz comum dessa tradição de muitos ramos e
frutos, o sincretismo, deixa de ser uma questão puramente religiosa para
tornar-se o fundamento de uma união musical, artística. A música de Umbanderia pergunta não apenas ao
ouvinte, portador da tradição, mas à própria tradição qual é seu fundamento. Tradição
é transmissão e não há transmissão sem ruptura e renovação.
Ao beber na fonte do cancioneiro popular
brasileiro, na antropofagia multiculturalista do Tropicalismo, e ao resgatar
dos Novos Baianos a indissociável ligação entre música e vida, composição e
convivência, isto é, a harmonia musical vital, agora, estes doces “novos
bárbaros”, convidam para o banquete dos loucos, onde quem tem razão não tem
direito a voz, mas a ouvir o que tem a dizer esta tradição que recomeça amanhã.
Canção
da paisagem
Na canção, a melodia não é mero acessório ou
suporte à letra, mas está intimamente ligada ao seu sentido, ou melhor, fornece
um sentido melódico à palavra que,
enquanto poesia, possui outro campo semântico. A entonação destoante de uma
palavra altera seu significado extrínseco, ao passo que o sentido intrínseco
depende da disposição da palavra no papel, enquanto poesia. E ao revés, a
palavra fornece um sentido poético que
não havia na melodia e, assim, ao expandir seu campo semântico e conferir um
sentido que lhe era estranho, cria nesta interseção um campo semiótico em que a
letra se comunica como melodia e a melodia como letra, em sua mútua semelhança
e estranheza, segundo um sentido que, separadamente, cada uma por si, não
conteria, ou seja, um sentido aberto a outros sentidos.
Porém, estas distinções entre melodia e
palavra, significado interno e externo, são arbitrariedades não funcionais,
inúteis, desnecessárias, mas que, apesar de tudo e de si, por serem absurdas,
pretendem apontar para relações insuspeitas entre pares que aparecem como
unidade na canção. Esta disjunção desnecessária dos elementos constitutivos da
melodia é uma vez mais tanto válida quanto inválida para os outros elementos da
música: o ritmo e a harmonia. Se o ritmo é formado por interrupções e a
harmonia por intervalos, de sua junção com a melodia, formada pela sucessão de
notas, a música encontra-se com a poesia na canção: harmonia temporal de
palavras e sons. E enquanto temporal, temporã, a canção precisa ser sempre
refeita, enquanto única e irrepetível, assim que tocada desaparece, para ser
novamente cantada, mais uma vez, única.
É assim que “A Hora da Chuva Cair”, canção que
nasce na paisagem, no mar, ressoa o mundo a ser feito, feito música, poesia,
canção, pois “nada no mundo virá, ninguém virá lhe dizer, qual a receita de
ser”. Pode ser Pó de Ser Emoriô: música
sem receita, mundo sem conserto, ser sem conceito.
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Informações:
Ouça, veja, toque, sinta: http://podeseremorio.tnb.art.br/
E vá: show dia 31 de outubro, 20h, Teatro do Ifes.
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Ouça, veja, toque, sinta: http://podeseremorio.tnb.art.br/
E vá: show dia 31 de outubro, 20h, Teatro do Ifes.
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