21/03/2010

sua palavra corrosiva
rasga minha pele
segura meu passo
a um passo da porta

– a dor incurável
da impossibilidade do retorno –

resta-me seguir outro
caminho improvável
caso amanheça
e eu volte a dormir.

Deus é um número irracional.

As tardes turvas de outono e as partes do tempo não lembradas, todavia vividas até o momento da partida, eram impregnadas de uma habitual solidão.


Faço da minha subsistência parte da existência
depois de fazer da existência subsistência
cuido de cada hábito para morrer a tempo de acordar
no labirinto circular em que me procuro.

(inventar uma pergunta convexa)
as nuvens nos meus olhos vagos
o silêncio da espera abandonada:
o tempo se devora.

a chuva sobre a pálpebra confusa
o choro represado da angústia:
o tempo se demora.

as nuvens nos meus olhos fechados
no parapeito da memória:
o tempo se desdobra.

teu corpo nublado
interroga minha mão:
o tempo se devora.

no meu corpo redescoberto
um sol possível
de ser pensado.
em matéria de tempo
o tempo da matéria
não é o mesmo:
da árvore,
da pedra,
da árvore
do outro lado
da pedra.

o fim do horizonte não há.
Quando a delicadeza e o cuidado esbarram nas incertezas de quem existe apenas uma vez, os limites do olhar tornam-se demasiadamente distantes e as palavras soam silenciosamente incompreensíveis.

Quando a espera se desfaz calada, guardada em perguntas repetidas sem a violência de qualquer resposta, reparte o encontro em possibilidades dessemelhantes de inacusável escolha e indesejável dúvida.

APENAS SEREMOS O QUE NÃO SERÍAMOS

Quando amanhã sairmos à rua para ver o sol se por e voltarmos úmidos de serenidade seremos então o que não seríamos se não saíssemos; porém a rua continuaria cheia de passos, o por do sol a se opor, o sereno a molhar os corpos inausentes.

Depois de ouvir isto, permaneci deitado. Não acendi a luz. Continuei procurando na memória a solidão daquela hora. Levantei. Não fui à janela para ver se o havia alguma luz.

Meus passos seguem lentamente seu destino e sem que eu pergunte a cada chão onde estou deixo-me levar por estas pernas tão alheias assim como acredito que coisas são feitas de olhar; e em cada canto ouço sussurros desmedidos de alguém que talvez esteja ali.

(2007?)

assunto miúdo

me deves uns trocados,
assunto miúdo,
aquele papo pouco
de trocar palavras por
gestos distraídos.

20/03/2010

Tomei a chave jogada da janela – abri a porta do edifício – subi a escada (tão indiferente aos meus passos) – cheguei ao apartamento. A sala, o quarto, a cozinha, o banheiro: ninguém; nem a poeira deitada sobre os móveis extintos notou minha presença inquieta.

(2006?)

PONTOS DE UMA PENÚLTIMA TENTATIVA DE ESTRÉIA

Olhei mais uma vez. Ele ainda estava lá. Quando virei, deve ter olhado o relógio: meia hora. Cheguei em casa, liguei o aparelho de som, a mesma música de ontem. Sentei no sofá. No horizonte raso algumas nuvens. Faltou energia. Busquei no armário alguma vela. Nunca comprei. Acendi um cigarro. O último gole de conhaque me trouxe as lágrimas, as mesmas de ontem.

(2006?)
Toda via é a mesma.
Todavia há outras.

Quem vê?
Quem vai?

(2006)

DESCONCERTO DE PIANO

Primeiro movimento
Prelúdio em si menor (um blues)

Um tanto de tango tocando
Um pouco samba torto também

Jazz fusion confusion
Com fado fora do tom

Muda o modo
Muda o mundo

Kind of Blue

Segundo movimento
Interlúdio

Silêncio

Terceiro movimento

Trecho de uma Resolução:
Ííí dabi-ibadá budê

Música incidental: Epístrofe

Quarto movimento
Interlúdio

Sol

Quinto movimento

MÚSICA:
violoncelo: melancolia: cordas arqueadas;
violão: angústia: corpo vazio;
piano: tato: dedos cravados;
trompa: sopro: círculo.
MÚSICA:
palavra-imagem.
MÚSICA quase não é som.

(2006)
NÃO SE PODE SAIR COM TOURO NA RUA

Não fosse o fim da festa (não conhecia ninguém) – mas meu irmão insistiu – não permitiria que ele prosseguisse – eu sonhava (começou a chover).

(Olhei o céu e nada). No banho, vendo meus olhos abertos, retomou o assunto – o que havíamos conversado? Permaneci na cama com um sorriso de quem ouve. Estava se limpando da noite, dos lençóis, do suor, do meu corpo, da lembrança da noite, do suor do meu corpo. (Olhei o céu e nuvens).

Entrei (não havia ninguém na casa), peguei algumas roupas – alguns papéis no chão –, sentei.

“Me ajuda a lavar a mão?”
Era muito pequena deitada no assoalho.
“O que houve?”
Não tinha um braço e uma perna.
“Nada...”
Hematomas amarelecidos e azuis.
“Como assim?”
Era muito pequena sentada no lavabo.

Não. Não a conheço. Olhos vermelhos? Um pouco de pó, talvez. Senta. Quer? Não, não a conheço. Só nos falamos uma vez. Ela estava sozinha. Precisava de atenção. Mas não a conheço. Parece bonita. Não. Não lembro o que conversamos. Era sobre ela. Estava sozinha. Estávamos na sala. Um pouco de pó. Ela estava sozinha. Precisava de atenção. Não. Não lembro. Eu sei o que eu queria. Queria sexo. Só sexo. Um pouco de pó. Então acho que ela queria. Não sei. Foi tudo muito rápido. Não sei o nome. Não lembro. Só sexo. Ela estava sozinha. Não fiz nada. Aliás. Ela nem gritou. Entende?

Fechou o registro, enxugou o sexo, continuou o assunto (como?), repetiu, falou atrás da toalha, veio em minha direção, (como?) te amo. Já estava em cima de mim, meu amor, repetia, meu amor, sua pele ainda fria do banho, sua boca com gosto de pasta, me chupa, meu amor, goza, meu amor, meu amor... Alisou meu rosto, beijou, levantou, lavou o sexo, falou algumas palavras, virei de lado e fechei os olhos.

Saí de sexo exposto, andei na calçada, alguém parou e me disse alguma coisa, sorriu e se foi, continuei na calçada, atravessei um jardim, não lembro qual casa, um pai comia o filho no quarto, voltei pra calçada, meu irmão veio falar comigo. Não. Não lembro. Era importante?

Mandei tomar no cu. Vesti minha roupa. Preciso ir. Preciso ir.

(2006)