28/12/2006

LEMBRANÇAS de 2006

26 de maio – 80 anos de Miles Davis
26 de julho – 80 anos de Moacir Santos
06 de agosto – morre Moacir Santos
23 de agosto – morre Maynard Ferguson
23 de setembro – 80 anos de John Coltrane
14 de dezembro – morre Sivuca
24 de dezembro – morre Braguinha
25 de dezembro – morre James Brown
28 de dezembro – 20 anos de morte de Andrei Tarkovski

22/12/2006

"O vento corta os seres pelo meio.
Só um desejo de nitidez ampara o mundo...
Faz sol. Fez chuva. E a ventania
Esparrama os trombones das nuvens no azul.
Ninguém chega a ser um nesta cidade,
As pombas se agarram nos arranhacéus, faz chuva.
Faz frio. E faz angústia... É este vento violento
Que arrebenta dos grotões da terra humana
Exigindo céu, paz e alguma primavera. "

(Momento/abril de 1937 - Mário de Andrade)

17/12/2006



"É um crime ignorar o pôr-do-sol, as primeiras neves, os pássaros e os sonhos."

(Andrei Tarkovski)

15/11/2006

(PRIMEIRA PERGUNTA)

QUEM PERGUNTOU PELO INDEFINÍVEL RUMO?
— sobre pontes e possibilidades —


Um dia de perder o olhar no céu uníssono. Outro de buscar nas janelas objetos diluídos pela luz. Então perceber a catástrofe dos passos alheios que sabem aonde vão. Mas: é sempre incerto caminhar. É preciso ter os pés desnudos. Sempre. Sair para encontrar-se no vazio, para não morrer entre paredes. Nunca.

Não há — senão uma ilusão transitória — outra ilusão.

Intermitente: como um navio sem nós que parte em transcurso invisível sobre pés inimagináveis e se entrega aos braços invariáveis dos portos inexistentes — entre a maré incerta e a noite náufraga —, deixa sobre a inesgotável matéria imprevisíveis palavras (dentro: ininteligíveis) e leva longe onde leve verdades imateriais:

navego sem remo e sem âncora, sem rumo e sem ânsia de chegar, navego sem cais e mais nada: sou isto que invento à circunferência de meus olhos.

O que disse o inverno quando passou com acenos de dedos secos e esquecidos, com sua mão de árvore solitária? Não ouvimos (respiramos)?

Espraia-se em meu corpo o desejo sem mar, o vento inevitável. Deságua em mim o rio sem margem, a chuva inadiável. Carrego nas mãos outra pergunta:

Não me ensinou o inverno a deixar caírem as folhas?

Guardo tanto maio e meio junho nas vésperas de dezembro, nas costas de janeiro (quem sabe algum fevereiro?), que já não sei o sabor do ido ar árido muitas vezes brando. Repetições empoeiradas de gestos imprecisos, reflexos dissimulados de superfícies desenterradas: nada resta nas gavetas senão lembranças amarrotadas: caminhos que nunca levam de possibilidades a possibilidades; horizontes indistintos do chão, lugares submersos em incertezas: os descaminhos nos levam sempre de impossibilidades a impossibilidades.

Coleciono horas nos cabelos, colho manhãs com os olhos e deixo nos cílios o imprevisível pólen, levo meus sentimentos nas têmporas. Mas é sempre tarde que percebo ter passado a primavera enquanto conto gramas no jardim. Sol na pele. Agora eu conto ondas.

02/11/2006

(SEGUNDA PERGUNTA)

QUEM APAGOU O REFLETOR NOTURNO?
— sobre pálpebras e lábios —


Com o tempo na língua — é preciso deixar o tempo dissolver na língua —, lento, para sentir nos pés, nas pernas, nos cabelos, os passos e o vento; perceber o olhar dos objetos: o tempo petrificado nos postes, nas calçadas, nos prédios, o tempo ultrapassado no próximo passo. Andar na ponta da língua, sentir com a ponta dos pés.

Tomar o rumo da fumaça (a vida é o instante em que se atravessa o feixe de luz da janela), se dispersar, ocupar todas as arestas do quarto e os brônquios de cada segundo esquecido: duro tempo, irrecuperável tempo, que se dissolve.

Fechar os olhos, apagar a luz (que permanece acesa), guardar as esferas abertas numa caixa, limpar da poeira diária cada gomo, limpar com sonhos, limpar dos sentimentos ressequidos, limpar com lágrimas.

A pele vestida de nudez e de desejos, porém muda, aquém da carne, palavra por palavra, nada transparece. O que fazer das mãos que afagam o corpo sem sentir? O que fazer do corpo que não sabe das mãos? O que sonhar quando se abrem os olhos?

Fôlego trôpego de um asmático: assim, nas esquinas e nas casas, procuro abrigo de um destino morto, e em cada encruzilhada e em cada porta encontro o entulho de minhas esperanças: espelhos.

Talvez haja estrelas além das pálpebras, maçãs além dos lábios: mas é preciso ter olhos e dentes.

22/10/2006

(TERCEIRA PERGUNTA)

QUEM INVENTOU O AR E A FERIDA?
– sobre corredores e portas –


Não sei se entre restos de sonhos ou manhãs que não chegam ou ausências caladas, passo aberto ao vazio, ao risco do acontecimento, aberto como uma cova ou um olho sem pálpebra ou um corpo sem pele, e percorro cada veia da memória para repetir todos os segundos dilatados e escutar todas as vozes afogadas, mas aonde chego há sempre alguém a se esconder, como pássaros às cinco da tarde, quem não ouve seu canto?, como pedras enterradas na areia, quem não sente sua dor?, como ruas descalças de pernas nuas, pois nas vísceras das horas suaves, atrás do fraco silêncio, derramam-se dolorosas palavras, amargas distâncias, no lugar das paredes – um horizonte morto.

Talvez seja possível caminhar pelas margens e sentir na face do vento o gosto das falésias, sem perceber o abismo a lamber os calcanhares, sem contar as linhas soltas do acaso, essa maré incerta que conduz para longe e perto, ao inacessível cais, sem chegar, pois chegar é nunca mais ter de seguir, antes se perder entre continentes e encontrar-se no desassossego da noite remota dissolvida nos lençóis, depois, quem saberá o que é ser outro enquanto só?, depois, e sempre, deixar que no tempo liso dos passos permaneçam desatentos os desejos fecundados na partida, enquanto se calam os amantes, enquanto se fecham as portas, enquanto restam janelas, enquanto não vemos que há sempre um espelho atrás das grades.

Quando falecem os pulmões restam os olhos secos.

Ninguém chora. Ninguém. Por onde ecoam os sentimentos escondidos? Ninguém vê. Ninguém. Para onde escoam os sentimentos dissolvidos? Ninguém lembra. Ninguém. De onde brotam os sentimentos despercebidos? Ninguém sente. Ninguém. Onde cabem os sentimentos desmedidos? Ninguém. Ninguém.

Vivem nos corredores e em quartos fechados. Você entra e acende a luz.

Como aprender com as nuvens a passar e a ser leve...?
(QUARTA PERGUNTA)
QUEM SOPROU SILÊNCIO SOBRE O BEIJO?
— sobre as navalhas que têm os olhos —


Não espero neste inverno que me venhas com teu corpo distraído e com tua boca vazia de lábios contraídos a buscar descompassados movimentos de língua no ar sempre cinza da perdida vontade para desenhar o desenvolvimento dos nossos braços e referir veladas feridas do inesperado fracasso depois da chuva onde tudo é pouco ou quase ou nada e um resto de dor que levemente deixa os pulmões entre esculturas de vento e espuma e areia sob os pés perdidos em submersas saudades por desamar lentamente perante a óbvia ruína dos ruídos calados nas encostas do olvido onde sempre cego ao acaso percebi (o amor é uma esperança sem espera)
que não há outra palavra senão a transitoriedade de nossos corpos mordidos pelo tempo de nossa solidão patológica esfregada com silêncio sobre a pele e ilhados olhos secos fechados como portas e cortinas para não ver os passos descuidados nos corredores nem as grades enferrujadas nas janelas que dão para o concreto impermanente da memória desabitada que adormece pelas ruas à procura de um espelho (o desejo é uma vontade desesperada)
quando amanhecemos mortos e carregamos nossos ossos pelos cômodos vazios sem termos onde lançar a mentirosa falta da fluida intermitência ou do peso da repetição que nos conduz às paredes disfarçadas de caminhos diluídos no suor imóvel da pressa sem céu sem chão e destituída de horizonte (a vida é uma espera sem esperança)
ainda que inventemos uma existência fora dos quartos ou mesmo que haja nas esquinas um outro destino feito das mesmas horas que foram sepultadas sem mãos por desconhecidas lembranças atrás da distância que recebemos como condição do instante desarrancado dos próprios dedos entre nossa mais calma ignorância e nossa mais desmedida violência escondida na rala voz de quem não sabe se só ou se perdido ou se cansado de esperar o inesperado acontecer nas pedras ou nas pálpebras sempre cerradas da nossa face estranha enquanto não há mais nada não há nada (não há esperança em nossa vã espera)
no eterno laço etéreo.

11/10/2006

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E quando procuro entre paredes
prender-me na dor
ameaçadoramente calma
sei que não haverá
em teus lábios longínquos
o nômade nome
do nosso laço.
Busco no seio das horas
como quem acabou de nascer
e não sabe e não pergunta
por que
o nome disso que não
tem nome
e tem cheiro inesperado
gosto de saliva e suor

mas são sempre horas pródigas
que fazem a memória
e nunca contam como foi
o tempo fora
e de que é inventada
a distância

Talvez tarde encontrar
nos mares tristes dos
dias sem sol se por
no amanhecer desfolhado indeciso
se amarelo ou vermelho
talvez tarde
encontrar em dormentes palavras
esquecidas do papel
de fabricar a própria tinta
existências encobertas.

08/10/2006

existência

existência
de éter
de ter
de iludir

de tear
elos estéreis
de estar
de partir

04/10/2006


Desabotoa como uma flor
a tua pele de Primavera
e não espera de outrora
o mesmo amor.

01/10/2006

primeiro (últimos poemas)

Eu talvez eu não serei, talvez não pude,
não fui, não vi, não estou:
― que é isto? E em que Junho, em que madeira
cresci até agora, continuarei crescendo?

Não cresci, não cresci, segui morrendo?

Eu repeti nas portas
o som do mar,
dos sinos,
eu perguntei por mim, com encantamento
(com ansiedade mais tarde),
com chocalho, com água,
com doçura,
sempre chegava tarde.
Já estava longe minha anterioridade,
já não me respondia eu a mim mesmo,
eu me havia ido muitas vezes.

Eu fui à próxima casa,
à próxima mulher,
a todas as partes
a perguntar por mim, por ti, por todos
e onde eu estava já não estavam,
tudo estava vazio
porque simplesmente não era hoje,
era amanhã.

Porque buscar em vão
em cada porta em que não existiremos
porque não chegamos ainda?

Assim foi como soube
que eu era exatamente como tu
e como todo mundo.

Pablo Neruda in Últimos poemas
(O Mar e os Sinos) - 1973


Sim, aqui, minhas coisas favoritas.