Não ouço mais aquela voz imaterial, não penso mais naquele sujeito sem carne e osso, desalmado, em sua existência improvável sentado numa cadeira abstrata fumando um cigarro imaginário com gestos lógicos e um olhar metódico que sempre pergunta a coisa certa a coisa mesma e a coisidade da coisa em questão, cada todo classificado em categorias antidogmáticas, comprovando o inverso do conceito, a dúvida que leva inevitavelmente a lugar nenhum, onde talvez algum filósofo tenha chegado e inventado uma palavra enciclopédica apodídica propedêutica metafísica psicológica a priori ética moral aristotélica incompreensível, que me faz repetir ruminar e reconhecer a ignorância primordial e o rumor do pensamento incompleto
12/10/2008
Aquele sujeito, cansado de existir, resolveu ser relógio, agenda, pedra, souvenir, um objeto qualquer que se esquece na gaveta. Não fala com ninguém, apenas ouve as vozes que reverberam sozinhas, acompanha os passos desorientados e pausas na respiração. Quer que o dia termine, mas não consegue dormir; está cansado demais para fechar os olhos, para ler ou pensar qualquer coisa. Desistiu de ir à rua, observar as pessoas, vaguear na areia, tomar banho de mar, ficar triste ou contente pela inexplicável sensação de estar vivo. Não pode chorar, não pode sorrir, não pode correr, não pode ser outro, nem José; não quer morrer, não quer querer, não quer negar, não quer nada. Quando o vi desse jeito, não lhe disse palavra alguma, nem lhe abracei, não o consolei. Ali mesmo, parado, sem pressentir seu desespero ou notar qualquer angústia, deixei que sua existência esgotasse até se perder de meus sentidos, até esquecê-lo, definitivamente.
24/08/2008
o céu feito cimento funde-se à paisagem de concreto da cidade e à passagem do automóvel de aço e vidro escuro no asfalto liso de pedra preta escorregadio onde uma poça de óleo olha o céu feito chumbo que se precipita e apressa o passante até a marquise que quebra a chuva que desaba e deságua a pálpebra úmida do rosto frio na janela embaçada do suor e da respiração repartida que arrisca da calçada oposta o silêncio da partida dos desconhecidos que deixam restos de rastros nas faixas da avenida onde o trânsito parado atropela à pressa o sorriso preso na boca da espera perdida entre as esquinas da incerta saída para o vulto de um desejo sôfrego que um soluço interrompe e o cílio interroga se o pássaro no céu branco que o vento estanca é uma sombra que foge ou um movimento indistinto da pupila que procura um ponto no horizonte mudo do mundo massa cinzenta nuvem pesada no fim do mesmo mês em que se acostumou a ver as árvores nuas no parque a neve negra da combustão da matéria morta a penetrar a falta de fôlego da fugacidade existencial que a ferida exposta da impossibilidade grita com voz grave áspera rouca insiste não respira respira respira através do texto diluído do corpo que corre até a palavra posta no primeiro passo.
05/04/2008
21/03/2008
11/03/2008
18/02/2008
As páginas que sucedem silenciosas, suavemente marcadas pelo tempo (murmúrios de chuva, vento e um sol que se esconde) – um tempo que talvez não haja – em caminhos incertos, guardam palavras não ditas, incompreensíveis, todavia vividas, ávidas de uma esperança sem semente nem flor, de galhos que se estendem ao outono que ainda não chegou e que se espera depois do sol que também não se vê.
20/01/2008
MEMÓRIAS DO VENTO
Qualquer palavra poderia ter sido a primeira.
Se não fosse, quem teria dito?
A única sensação que tenho são as palavras e como estranhamente lembro-me delas.
O que une e delineia as palavras é um abismo – e percorrê-lo, vertiginoso.
Ficar: intervalo entre o tempo de distância e a possibilidade da chegada.
Partir: a saída mais óbvia e angustiante.
Qualquer direção que poderia ter sido única era incerta.
Agora parece ser o único instante que não retorna. – E por que haveria de retornar? (Posso perguntar dez vezes!)
Soa outra vez um desejo: ouvir mais silêncio e chuvisco.
A existência habita o tempo
, de que meu corpo se alimenta.
A luta pela sobrevivência é apenas condição para afirmar temporariamente minha existência.
Depois de corpo em queda
toda lembrança é vazia.
Como perder o chão, não ter onde apoiar a vista – vertigem horizontal.
É preciso mergulhar no esquecimento para não ficar somente com o que paira na memória.
Sem origem – vertigem do tempo.
Na areia o mar sepulta rastros. Na calçada não restam passos. Na memória não existem fatos.
18/01/2008
I
O que não conheço não existe?
O que conheço existe?
O que sei?
Porque penso, existo?
Se não penso?
Se me esqueço?
Onde habito?
Quem habita o hábito
ou ausências
existe só
ou inventa existências.
II
Ainda habito estas ausências.
Ainda chamo ontem o esquecimento.
Ainda falo de silêncio e incompletude
das palavras.
Qual palavra ou ruído é possível
nas ranhuras do tempo
disperso de sentido
sem acontecimento
nem experiência
que delimite o espaço
num momento inexistente?